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Glória Moura, mas pode me chamar alegria – Por Mônica Nogueira

Fecho os olhos e sinto o cheiro de velhas aldeias. O fogão a lenha de mamãe impregna a casa, cabelos e roupas. Se vovô vem do Mercado de São Pedro, na velha Niterói, logo os cheiros de pescados também se misturam no ar. Estamos todos envoltos em uma atmosfera morna e gentil, compassada pelo ritmo dos afazeres domésticos. Panelas areadas ornam prateleiras e paredes da cozinha. O alarido alegre dos dias ecoa pela casa. Os passos agitam as tábuas que a percorrem.


Mamãe me chama: – Minha Queza! Sou, para ela, uma pequena joia, protegida por Nossa Senhora Menina. Tanto mamãe chorou e rogou por minha saúde, que a santinha me acolheu em seus braços. Quem sabe não foi ela – a santinha – quem me deixou, entre achas de lenha, aquela pequena cruz? Tinha eu oito anos, então.


Eu mantive a pequena cruz comigo ao longo de toda vida. Ainda hoje me lembro
de tê-la pendurado sobre o calendário da União Nacional dos Estudantes de 1964. Eu já era uma jovem mulher. Engajei-me em lutas por liberdades e justiça. Conheci Carlos, companheiro em todas elas, com quem me casei. Frutificamos em 4 filhas.


Tempos adversos aqueles sessenta, setenta. Carlos é preso pelo governo militar. Me vejo sozinha com as crianças. Mamãe é quem me socorre. Enquanto trabalho, ela cuida dos netos.


Em 76, deixo Niterói para residir em Brasília, antítese do litoral fluminense, uma
cidade árida e angulosa. Brasília ergue-se do chão vermelho do Planalto Central, sob os nossos olhos, prenhe de possibilidades.


Inicio o mestrado em educação na Universidade de Brasília, mas aqui também os
coturnos nos alcançam. Um ano depois da nossa chegada, a Universidade é ocupada por tropas militares. Atravesso os corredores da Faculdade de Educação na companhia de Angélica, amiga de JUC, a Juventude Universitária Católica. A boca seca. O junho frio. Convencemos professores e estudantes a interromperem as aulas em protesto. Tempos duros aqueles.


Mas a devoção a Nossa Senhora, aprendida entre as ladainhas e orações tantas
vezes repetidas por mamãe, me acompanhou sempre. Uma fé de que tudo passa, o
bem prevalece e a vida pede celebração. Essa mesma fé e alegria encontrei entre as comunidades quilombolas, minhas interlocutoras de pesquisa por longos anos. Fé, alegria e o aroma de lenha, como na casa de minha infância.


Hoje madura, me sinto uma gameleira frondosa. As filhas cresceram e se tornaram galhos fortes: Débora, Luciana, Cristina e Carla. Floresceram netos: Bruno, Aisha e Marina. A natureza, a vida que segue, obras do divino.


O doutorado veio aos 61 anos. Carlos sempre ao meu lado, o austero companheiro, me ensinou sobre o amor em todas as idades. Que virá aos 80, aos 90? Sinto que ainda tenho ramos por desabrochar. “É a vida, mais que a morte, que não tem limites”, disse o comandante do barco que levou Fermina Daza rio afora. Estou nesse barco e sigo em viagem. Vivo todo e cada dia com a alegria do novo.